quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Aos colegas professores...De quem é a tarefa de ensinar a ler e escrever?






      Leitura e escrita são tarefas da escola e não só do professor de português.  A tarefa de ensinar a ler e a escrever um texto de história é do professor de história e não do professor de português. A tarefa de ensinar a ler e a escrever um texto de ciências é do professor de ciências e não do professor de português. A tarefa de ensinar a ler e a escrever um texto de matemática é do professor de matemática e não do professor de português.
     A tarefa de ensinar a ler e a escrever um texto de geografia é do professor de geografia e não do professor de português. A tarefa de ensinar a ler e a escrever um texto de educação física é do professor de educação física e não do professor de português. A tarefa do professor de português é ensinar a ler a literatura brasileira. Ler e escrever são tarefas da escola, questões para todas as áreas, uma vez que são habilidades indispensáveis para a formação de um estudante, que é responsabilidade da escola.
   Ensinar é dar condições ao aluno para que ele se aproprie do conhecimento historicamente construído e se insira nessa construção como produtor de conhecimento. Ensinar é ensinar a ler para que o aluno se torne capaz dessa apropriação, pois o conhecimento acumulado está escrito em livros, revistas, jornais, relatórios, arquivos. Ensinar é ensinar a escrever porque a reflexão sobre a produção de conhecimento se expressa por escrito.        
     Numa primeira instância, ensinar a ler e escrever é alfabetizar, levar o aluno ao domínio do código escrito. E já aqui é preciso rever a crença de que ao alfabetizar-se o aluno não está propriamente aprendendo uma língua, mas apenas transpondo a língua que já fala para um outro código. Isso não é verdade para nós, aqui no Brasil.
     Os estudos de nossa língua falada, levados a efeito por vários pesquisadores, entre eles um grande grupo de linguistas de todo o Brasil reunidos no Projeto de Gramática do Português Falado, estão mostrando não só que há uma grande variação linguística (geográfica e social) interna no País - ao contrário do que sempre disse o mito da unidade linguística brasileira -, mas também que a língua que falamos difere muito da língua falada em Portugal, a qual deu origem ao português escrito.    
     Na verdade, hoje podemos dizer que falamos uma língua e temos de aprender a ler e escrever em outra língua. E esse novo saber que a ciência da linguagem nos proporciona faz duas revelações de transcendental importância a nosso respeito: a) nós, de fato, falamos muito mal português, não porque sejamos estúpidos, incompetentes, vagabundos, desleixados, incapazes, como sempre tentaram nos fazer crer, mas porque falamos - muito bem, tão bem quanto qualquer outro povo do mundo – uma outra língua, parecida com o português, com a qual somos capazes de dar conta de nossas necessidades expressivas; b) nós falamos uma língua apenas parecida com o português e, por razões de política cultural, temos de aprender a ler e escrever em português.
     Por que são tão importantes essas revelações? Porque, em primeiro lugar, podemos deixar de nos culpar por não termos aprendido a ler e escrever direito na escola, pois a escola tentou ensinar-nos a ler e escrever em português como se fôssemos falantes de uma língua cujas frases têm sujeito e predicado, cujos pronomes pessoais mudam de forma conforme a função sintática que exercem na frase, com desinências verbais próprias para as segundas e as terceiras pessoas, cujos futuros são simples e em que o adjetivo concorda com o substantivo. Como a língua que falamos' não tem nada disso, agora podemos pôr a culpa na escola, que não nos ensinou direito e nos culpou por não termos aprendido.
     Em segundo lugar, porque podemos, agora, começar a pensar num modo mais adequado de ensinar a ler e escrever nessa língua que não falamos, nessa língua apenas parecida com a língua que falamos nessa língua estrangeira. E aí está um rumo: o aprendizado de uma língua estrangeira começa pela familiaridade que desenvolvemos com ela. Logo, nós só vamos aprender a ler e a escrever em português se praticarmos bastante a leitura e a escrita em português, se praticarmos muito mais do que nos mandaram praticar. Onde? Só tem um lugar: na escola. E só tem um meio: nós, professores de todas as áreas, em vez de, nos limitarmos a choramingar que nossos alunos não têm o hábito da leitura, devemos nos dedicar a proporcionar muitas e muitas oportunidades para que todos descubram que ler é uma atividade muito interessante, que a leitura nos proporciona prazer, diversão, conhecimento, liberdade, uma vida melhor, enfim. E essas oportunidades terão de ser tantas quantas forem necessárias para que o aluno passe a gostar de ler e por isso, contraia a necessidade da leitura e que esta vire hábito. Oportunidade de ler o quê? Tudo, pois o único lugar onde a televisão ainda pode ser desligada é na escola.
     A sala de aula é o único lugar onde as crianças podem ser colocadas quietas nos seus cantos com um livro na mão para aprender que ler é um diálogo solitário com um texto que se vai desvelando ao seu olhar. E para a grande maioria de nossas crianças a escola é o único lugar onde há livro - e não só as da classe popular, onde não sobra dinheiro para comprar livro, mas também na classe média, onde o dinheiro que sobra não costuma comprar livro. Ler tudo, desde as banalidades que possam parecer divertidas até as coisas que o professor julga que devem ser lidas para o desenvolvimento pessoal do aluno como pessoa sensível, civilizada, culta, como cidadão, para o estabelecimento de seu senso estético, de sua solidariedade humana, do seu conhecimento.
     Isso é tarefa do professor de português? É. É tarefa do professor de história, de geografia, de ciências, de artes, de educação física, de matemática... E. E tarefa da escola: a escola – os professores reunidos na mais básica das atividades interdisciplinares - vai reservar alguns períodos da semana para que os alunos se dediquem, em suas salas de aula, à leitura individual, solitária, silenciosa de todo tipo de material impresso: livros, jornais, revistas noticiosas e especializadas, romances, contos, ensaios, memórias, literatura infanto-juvenil, literatura adulta, paradidáticos de todas as áreas, textos de todo tipo, enfim, postos à sua disposição para que o exercício da leitura os transforme em leitores. E vão ler a respeito de quê?
     Nessa leitura interdisciplinar de formação de leitores vão ler, principalmente, o que acharem interessante: começando por histórias de aventura e de amor, que satisfaçam sua necessidade de fantasia, passando por poemas de todo tipo, que deem vazão aos seus sentimentos e os organizem, passando por reportagens de atualidades, de divulgação científica, que encaminhem sua curiosidade e forneçam uma base para dimensionar o mundo em que vivem, notícias sobre a cidade, sobre o estado, o país, ensaios sobre história do Brasil, da América, do mundo, sobre os problemas do presente, sobre outros povos, contemporâneos ou antigos, sobre a política, os costumes, os esportes, a tecnologia, as ciências, as artes etc.
     Trata-se fundamentalmente de exercitar a leitura para praticar, numa primeira instância, a decodificação da escrita, adestrando o olho para enxergar mais do que uma letra de cada vez, mais do que apenas uma palavra, para entender os processos de construção das palavras (os radicais, os afixos, as desinências), para enxergar as discrepâncias que caracterizam a ortografia, para atribuir significado a expressões, a metáforas, para familiarizar-se com a sintaxe da língua escrita (a concordância verbal e nominal, as formas e os tempos verbais, o uso das preposições, as conjunções e outros nexos), para entender o significado dos sinais de pontuação, o das letras maiúsculas e o das minúsculas, o das margens do texto, para construir um repertório de enredos, de personagens, de raciocínios, de argumentos, de linhas de tempo, de conceitos que caracterizam as áreas de conhecimento, para, enfim, movimentar-se com desenvoltura no mundo da escrita.
       Esta leitura de formação de leitor visa desenvolver no aluno a familiaridade com a língua escrita através da leitura de todo o tipo de texto, numa quantidade tal que o faça gostar de ler e de perceber a importância da leitura para sua vida pessoal e social, transformando-a num hábito capaz de satisfazer esse gosto e essa necessidade. E como os professores trabalhariam com esses livros? Ensinando a ler, começando por colocar o aluno na mais adequada postura para ler: sentados em silêncio - administrando a retirada dos livros, conversando com o aluno que solicitar orientação a respeito do assunto do livro, incentivando-o a olhar no dicionário alguma palavra-chave para o entendimento do texto, ajudando o aluno a usar o dicionário, fornecendo-Ihe indicações bibliográficas nas quais poderá procurar mais informações a respeito de um assunto que lhe despertou interesse mais forte, estimulando esse interesse, incentivando-o a falar aos colegas a respeito do que está lendo, a trocar impressões com os colegas a respeito de leituras comuns.
      E por que em sala de aula e não na biblioteca? Porque a sala de aula é o lugar onde o professor ensina, onde ele mostra, por sua presença e sua atuação, a importância da leitura: ele traz os livros, apresenta-os, quer que todos escolham o que vão ler, fica sabendo do interesse que se vai formando em cada um, faz sugestões, discute e aprofunda os assuntos, responde perguntas e lê com seus alunos.      A biblioteca é o lugar de outra magia: lá está o tesouro inesgotável do conhecimento construído historicamente pela humanidade. Na biblioteca, o aluno, explorando o seu acervo, vai expandir seus interesses: vai descobrir que existem enciclopédias, mapas, atlas, manuais, revistas, livros de todo o tipo e sobre todos os assuntos, ou vai concentrar-se numa leitura de aprofundamento de um determinado interesse criado na leitura em sala de aula.
     A sala de aula é lugar da criação de um vínculo com a leitura, pela inserção do aluno na tradição do conhecimento. A biblioteca é o lugar do cultivo pessoal desse vínculo; lá se processa o amadurecimento intelectual. Ao lado dessa atividade de leitura orientada pelo gosto, pelo prazer de atribuir sentido a um texto, cada professor, na aula de sua respectiva área (ou dois ou mais professores em trabalho multidisciplinar), vai promover a leitura de textos que valem a pena ser aprofundados: agora todos vão viver o encantamento da descoberta dos muitos sentidos em um texto decisivo para o conhecimento produzido pela humanidade.
     Esta leitura de inserção do aluno no universo da cultura letrada desenvolve a habilidade de dialogar com os textos lidos, através da capacidade de ler em profundidade e interpretar textos significativos para a formação de sua cidadania, cultura e sensibilidade. O mesmo para a escrita: se nós, professores de todas as áreas, proporcionarmos a nossos oportunidades para que escrevam muito para dizer coisas significativas para leitores a quem querem informar, convencer, persuadir, comover, eles acabarão descobrindo que escrever não é aquela trabalheira inútil de preencher 25 linhas, de copiar livro didático e pedaços de enciclopédia.
      Nossos alunos descobrirão que são capazes de escrever para dizer a sua palavra, para falar deles, de sua gente, para contar a sua história, para falar de suas necessidades, de seus anseios, de seus projetos e acabarão por descobrir que são gente, que têm o que dizer, que têm história, que têm necessidades, anseios, que têm direito a satisfazer suas necessidades, a fazer projetos, que podem aspirar a uma vida melhor, enfim. Por isso, cada professor em sua sala de aula vai vincular - através da produção escrita - conteúdos específicos das áreas com a vida de seus alunos, solicitando-lhes que escrevam sobre aspectos de suas vidas, propondo que esses textos sejam lidos para os colegas e discutidos em sala de aula.
     Cada professor lerá esses textos com interesse pelo que dizem e não apenas para corrigir o português ou verificar o acerto de suas respostas. Orientará a desses textos para que digam com mais clareza e mais precisão o que querem dizer. E mandará ler um poema, uma notícia, um conto, uma reportagem, um artigo, um livro que diga coisas interessantes a respeito de um tema suscitado nas discussões desses textos, aprofundando essa leitura com os alunos e pedindo que voltem ao assunto para incorporar os dados novos trazidos por essa leitura, dando continuidade à discussão.

 Fonte: GUEDES, Paulo Coimbra; SOUZA, Jane Mari de. “Leitura e escrita são tarefas da escola e não só do professor de português”. In: Ler e escrever: compromisso de todas as áreas. Porto Alegre, RS: Editora da UFRGS, 2011; 9. ed.

5 comentários:

  1. Lecionei matemática por sete anos, percebi um fato curioso, alguns alunos não tinham dificuldades com a matemática em si, o problema deles era de interpretação. Assim, é que um aluno que não lê e não interpreta corretamente terá problemas em todas as áreas.

    Um final de semana maravilhoso para você!

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    1. É por isso que todos nós devemos nos comprometer com a instrução da interpretação e da leitura, pois no universo das letras, apenas um professor responsável por isso é tarefa praticamente inalcançável.
      Bom fim de semana pra você também!!!

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    2. De fato, Milena!

      Os próprios pais renegam sua função pedagógica deixando tudo nas mãos dos professores. Digo mais, não só as tarefas afetas à educação formal, como também à social: bons modos, etiqueta, etc.

      Árduo trabalho mudar essa visão errada dos vários atores sociais.

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    3. Eis o problema da EDUCAÇÃO Moacir...Ninguém quer a função, pois dá trabalho e requer muito do ser!!!
      Obrigada pela vista e o pertinente comentário!
      Milena

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